Frantz Soares
Discursos sobre a Pintura
Atualizado: 26 de ago. de 2022
Por Paula Ramos

O que é pintura? Elementos de sinalização do trânsito, desses que são fixados às ruas, formando as faixas de segurança para os pedestres, dividindo as pistas e indicando as direções, são pinturas? O resto da tinta acrílica que fica na lata, constituindo uma película plástica, é pintura? Pintura não é superfície e cor, superfície e pigmento? Essas são algumas das provocações de Frantz para se pensar o que é, de fato, pintura.
Na verdade, tudo o que Frantz propõe e faz sempre gera alguma divergência. Quando, em 1982, expôs suas pichações no Margs, em Porto Alegre, foi uma balbúrdia. Primeiro, porque ele era um estreante e, sobretudo, porque as suas imagens primavam pelo caráter nada ortodoxo, colocando desde aquele momento o processo pictórico tradicional no limbo. Tratava-se de obras fortemente gestuais, feitas com tinta acrílica e spray sobre tela, que transpunham para o quadro a linguagem dos pichamentos urbanos. Tal como um muro da cidade, seus trabalhos mostravam palavras e sinais gráficos em preto e vermelho, num viés de crítica política e social. Liberdade foi o termo mais reproduzido, bem como suas frações, oriundas de cortes que o artista operava nas extremidades da palavra. Surgiram então expressões como iberdad e, logo após, erda, que poderiam suscitar distintos significados. Na seqüência, apropriando-se da palavra Lixo e explorando os estilhaços do vocábulo, Frantz encontrou o “X”. Constante nas pichações de rua e usado tanto como sinal de escolha, como de anulação, o “X” se incorporou à poética do artista de tal forma, que acabou se transformando num de seus emblemas. Ele está em diversas de suas pinturas, gravuras, intervenções no espaço público e também na impressionante série produzida a partir de meados dos anos 80, na qual o suporte da obra era a própria tinta acrílica. Ou seja, tinta sobre tinta. Devido à maleabilidade do material, as pinturas acabavam sendo também objetos, clamando pelo envolvimento do espectador, podendo e devendo ser manipuladas, dobradas, moldadas. Novamente, algo nada convencional.
As recentes pinturas de Frantz, fragmentos de pisos e paredes do atelier, mantêm a ousadia que distingue a sua trajetória. O processo vem se desenvolvendo há pelo menos quinze anos e é interessante que seja brevemente descrito e situado.
No final da década de 80, Frantz esteve por duas vezes na Alemanha, a estudos. Alugou apartamento e, naturalmente, deveria entregá-lo como recebeu: limpo. Para proteger o chão dos respingos de tinta, cobriu o mesmo com folhas de papel branco justapostas. E eis que, certo dia, olhando para os papéis que se estendiam pelo quarto, percebeu que tinha diante de si pinturas. Desprovidas de qualquer intenção, aquelas manchas e nódoas multiformes e vicejantes eram o registro do acaso e do próprio ato de pintar, do embate entre o pintor e a tela, entre o pintor e seus materiais; formas resultantes de um campo de batalha, para usar a expressão tão cara ao artista. Essa experiência foi decisiva para ele. Desde então, progressiva e racionalmente, abandonou o fazer em prol de um outro exercício, o olhar. O resultado é que hoje Frantz é um pintor que não pinta.
Objetivamente, seu trabalho consiste em forrar com papel ou tela branca e imaculada o atelier no qual ministra aulas de pintura. O sentido é, em tese, proteger o espaço dos resquícios do processo de pintar. Por ali passam dezenas de alunos e artistas, e essa cobertura vai recebendo, passivamente, respingos de tinta, pegadas, marcas de cigarro, sinais de cavalete, de latas, camadas e camadas, dezenas delas, de restos. Todos materiais mortos, o que constituiria o lixo do atelier. É da interação desses detritos com o suporte que se formam as pinturas de Frantz. Quando caminha pelo lugar, quando caminha sobre as vindouras pinturas, costuma apontar espaços de sedimentação e de cor que considera interessantes, que constituirão suas futuras obras: “Aqui tem pintura. Ali, naquele canto, tem outra”. No caso dos trabalhos em papel, os módulos são retirados e aproveitados em sua totalidade. Já os tecidos passam por uma edição, por uma composição. Só depois de a tela ser cortada é que a mesma será fixada ao bastidor. Está aí a sua assinatura e é aqui que reside um dos pontos que mais lhe interessa. “Se a sujeira do atelier foi produzida pelo artista que estava fazendo a sua obra, a pintura que eu tiro dessa sujeira é minha ou é dele? Se eu pego um espaço e o recorto, se eu pego algo que é um resto dos outros, eu posso me dar o direito de assinar isso como meu? Acredito que posso, e é isso que venho fazendo”, comenta. Seu trabalho toca, portanto, em duas questões ainda controversas do campo da arte: de um lado a autoria e, de outro, a manufaturação. Provocações e polêmicas, mas não para o artista: “Como acredito que só existe polêmica quando existe debate, então não há polêmica. Muita gente vê o que eu faço com descrença, não entende e não quer entender. E eu gostaria que houvesse essa discussão; é dela que as coisas nascem”.
Ao resgatar esses refugos e dejetos do atelier, insuflando-lhes vida, Frantz nos mostra que tudo, nesse fantástico laboratório, é passível de ser visto como pintura. E então cria livros, formas escultóricas a partir de sobras de tinta, de indícios de outras obras, de outras pessoas. Ele admite que nunca sabe se vai funcionar, mas faz, e faz porque gosta, regido pelo desejo, não pelo mercado, jamais pelo mercado. Daí também as raras exposições.
Atualmente acontece uma dessas mostras bissextas. É na Pinacoteca da Feevale, em Novo Hamburgo, onde Frantz expõe alguns fragmentos de pisos e paredes, fascinantes e sedutores em sua pulsante materialidade. Trata-se de uma oportunidade de dialogar com as suas idéias, de ver o trabalho de um artista absolutamente coerente que, desde o início, jamais teve medo de experimentar. Se as suas imagens conseguirem desestabilizar as nossas frágeis certezas acerca da arte, estarão cumprindo o seu desígnio.
Paula Ramos é Jornalista e Doutorando em História, Teoria e Crítica de Arte/UFRGS.